Tobias
Tobias era o cão. Foi logo depois de o marido morrer que a sobrinha lho trouxe, um bulldog, cachorro ainda, às malhas cinzentas e brancas, os olhos esbugalhados, parecia sofrer de vitiligem com aquele focinho negro manchado de cor-de-rosa. Feio era, mas em contrapartida companhia preferível à do marido que longamente odiou, um agiota, avarento como ela, o dinheiro, as acções, toda a sua considerável fortuna era de papel, estava em sacos de lona no alçapão sob o soalho da sala. Nem a casa era deles por a renda ser ínfima. Não se leva nada para o outro mundo, costumava dizer à sobrinha. Mas acabou por enxotá-la, não gosto que me lambam a burra do dinheiro, um dia herdarás tudo, descansa, quando precisar de ti chamo-te. No entanto, em catorze anos nunca a chamou, quase não saía à rua, detestava ver gente, odiava a humanidade, nisso e em muito mais era como o defunto. Depressa ganhou afeição ao bicho, dormia com ela, urinava e defecava por toda a casa, comia à mesa o que ela comia, um em frente do outro.
Agora estava gordo e redondo, velho e mais asqueroso e porco do que nunca, a baba escorria-lhe e a dificuldade em respirar era cada vez maior, até que a velha um dia quando acordou foi encontrá-lo de patas para o ar aos pés da cama, morto. Um grito lancinante rasgou o fedor da penumbra, ajoelhou-se junto do cadáver e carpiu-o longamente, depois levantou-se, tenho de tomar umas providências, disse com voz seca, e só à meia tarde foi para cama à espera da morte.
No dia seguinte o padeiro bateu à porta e tornou a bater, esperou e já não bateu mais, correu a casa da sobrinha, ninguém responde na sua tia, contou, deve ter sucedido algo. Os olhos dela cintilaram com um brilho de vitória, vês como perdeste, querida tiazinha, disse para si mesma, e berrou para o marido, sucedeu alguma coisa à minha tia, despacha-te, vamos a casa dela depressa, às tantas morreu.
Arrombaram a janela e entraram. Arre, que pocilga, exclamou ela, é preciso tapar o nariz, e logo se separaram do padeiro que foi dar com a velha no quarto, venham cá, venham cá, chamou-os, ela está aqui, morreu, e o cão também, mas logo ouviu a sobrinha praguejar filha da puta, filha da puta, a voz esganiçava-se-lhe de raiva, arde no Inferno, filha de uma grande puta. O padeiro acorreu à sala e mal chegou viu uma porção de sacos de lona vazios espalhados pelo chão: ele revirava-os do avesso, desesperado; ela, sem deixar de praguejar, revolvia em vão a cinza na lareira à procura de algum dinheiro por arder.